Transition Brasil

Liziana Rodrigues de Souza recebeu o blog Futuros Desejáveis para um bate-papo acolhedor e surpreendente em sua residência, na capital do estado do Paraná. Uma hora de conversa, no modo virtual, em que diferentes assuntos foram abordados e discutidos. Segundo nossa entrevistada, seu maior desejo é trilhar e compartilhar caminhos onde as relações possam ser pontes para conexões mais saudáveis. Além disso, em sua proposta prática, encara o desafio da ampliação de consciência e da experiência nos caminhos da transformação pessoal e social como um autêntico exercício da paz. Gostou? Tem mais: Liziana está atenta ao acesso de novos conhecimentos empíricos, espirituais e científicos que possibilitem o alcance da criatividade e da espontaneidade amorosa.

Para começarmos a entender por que Liziana é uma andante futurista e qual sua ligação com o movimento Cidades em Transição, a redatora do blog apostou na narrativa jornalística denominada pingue-pongue, a fim de valorizar o discurso da interlocutora e seu papel social. Pingue-pongue é uma entrevista face a face que transcorre por meio de uma sequência de perguntas abertas, intercaladas com respostas do entrevistado.

 

Futuros Desejáveis – Quem é a Liziana Rodrigues?

Liziana – Você tem tempo? (risos) É uma pergunta simples e ao mesmo tempo complexa. Basicamente neste momento estou trabalhando com pessoas na área de desenvolvimento humano em Curitiba. Tenho uma pequena empresa e o que apresento para o mundo são possibilidades de design de processos. Por exemplo, com a prefeitura de Curitiba desenhei uma capacitação sobre liderança para gestores. Pessoas que têm equipes. É um grande desafio porque o que é liderança pós-pandemia? Estou me vendo, nesse sentido, como anfitriã. Nunca vivi esse papel. Também sou escutadora. Faço escutas compassivas, escutas empáticas em dois projetos. Sou cofundadora de um dos projetos. Oferecemos horas, durante o mês, gratuitamente, para escutar as pessoas com base na comunicação não violenta, com base na escuta compassiva.  Percebemos nesse campo de escuta o quanto as pessoas estão mobilizadas com a realidade atual. Algumas pessoas, percebo, estão em eterna negação; outras estão impactadas financeiramente; outras já deram um salto quântico, já se reorganizaram. De qualquer forma entendo que é um novo lugar. Como trabalho diretamente com pessoas com essa pegada de desenvolvimento, de habilidades sociais e educação emocional, estou muito conectada com o impacto da pandemia, não nos serviços propriamente dito, mas nas pessoas. Sou uma pessoa que está tentando se adequar a uma nova realidade em termos de trabalho, em termos emocionais. Às vezes está legal, às vezes não está tão legal. De qualquer forma, é um momento em que todos os dias são diferentes.

Futuros Desejáveis – De onde você é e qual a sua formação?

Liziana – Sou do norte do Paraná. Nasci em Ivaiporã e com um mês de vida fui para Maringá. Estou em Curitiba há 30 anos. Eu tenho a influência do norte. Gosto demais de Maringá. É uma cidade interessante e referência para algumas coisas. Só não suporto o calor de lá. (risos) Tem a Universidade Estadual de Maringá – UEM reconhecida nacional e internacionalmente. Gosto muito de Curitiba também pelos desafios, encantos e desencantos. Já fui funcionária pública em Curitiba, na área de saúde, e trabalhei com capacitação de pessoal. Tem muitas coisas nessa cidade que eu botei a mão mesmo, urbanamente falando. Por outro lado, ela já é uma cidade completamente diferente, com outras perspectivas do que há quinze, vinte anos. Fiz faculdade que até hoje as pessoas não entendem muito bem o que é: sou Musicoterapeuta. Se hoje não é conhecida, imagina há trinta anos! Trabalhei em hospitais psiquiátricos e em clínicas por muitos anos. No último ano do curso eu escolhi a saúde mental. Uma das primeiras formações do Brasil de acompanhante terapêutico, o AT, começou com a nossa clínica. Algum tempo depois de trabalhar na área de saúde mental, fiquei um pouco impactada com a falta de apoio porque, à época, tínhamos uma clínica e procurávamos apoio junto às universidades e ao SUS para fazer convênio, mas as pessoas não ligavam para a gente porque nossa proposta era inovadora, muito além do seu tempo. Nossa proposta era a de conviver com o paciente. Morávamos com os pacientes praticamente. Os pacientes vinham para a nossa clínica e com um trabalho muito próximo a eles, durante as 24 horas do dia, todos os dias do mês, eles paravam de tomar a medicação ou diminuíam drasticamente e isso assustava as organizações de saúde. Fui perdendo o pique pela falta de compreensão da sociedade em relação à minha prática em saúde mental. Fui trabalhar na prefeitura de Curitiba na área de capacitação, mas não me desvinculei totalmente da saúde mental. Até hoje, quando vou montar uma proposta de trabalho, acesso esse lugar. Não sou mais servidora pública, tenho uma empresa de capacitação e treinamentos e percebo muita influência da área da saúde mental quando vou trabalhar com as pessoas. Muita, mesmo. Sou diretora de teatro também, na modalidade Playback Theater, e já faz mais de vinte anos que pratico essa modalidade de teatro em Curitiba. Temos o segundo grupo mais antigo: a Companhia Re-Trato Playback Theater.

Futuros Desejáveis – Qual sua opinião sobre o treinamento das Cidades em Transição?

Liziana – Eu pertenço a uma comunidade em Curitiba que se chama Instituto Nhandecy. Um de seus carros-fortes é a permacultura, e por este viés eu cheguei ao movimento Cidades em Transição. Temos algumas pessoas em nossa comunidade que trabalham com a perspectiva urbana das cidades. Eu diretamente não faço isso. O meu campo é relacional e o que me chamou atenção no treinamento foi pensar como poderia expandir minha expertise relacional de trabalhar com as questões emocionais com a proposta de sustentabilidade. O que percebi no treinamento foi o encantamento das pessoas. Senti que elas são completamente apaixonadas por esse lugar de criação. Sou muito “facinha” de me apaixonar pelo que encanta as pessoas. À medida que os módulos iam sendo apresentados, percebia que estava sendo mobilizada internamente para ir a outros lugares, não só ligados às áreas de treinamentos e capacitações, e sim para outras propostas coletivas e urbanas. Uma das coisas que me encantou no treinamento das Cidades em Transição foi justamente entender que nossos sonhos têm lugar. Todos os nossos sonhos que são para o bem coletivo têm lugar, eles podem ser energizados, podem ser potencializados. O treinamento foi um divisor de águas porque antes era abstrato e depois dele vejo caminhos concretos. Um exemplo, moro em um edifício de 12 andares. No topo dele tem um terraço que é a dimensão do prédio. A minha proposta é que esse espaço se transforme em horta urbana. Pelo menos 1/6 ou 1/7 do terraço em horta. Essa ideia já tinha antes do treinamento, porém, depois dele, ficou mais forte.

Futuros Desejáveis – De qual iniciativa você participa que representa o movimento Cidades em Transição?

Liziana – Percebi que a proposta do treinamento está intimamente ligada ao projeto que o Instituto Nhandecy tem com a Penitenciária Estadual do Paraná. É o Projeto de Permacultura no CIS – Centro Integração Social – Penitenciária Feminina do Paraná. Trabalhamos com as detentas no sentido de levarmos as noções de permacultura para elas. Construímos jardins na unidade delas, junto com elas, chamados de jardins com sentidos. Usamos o duplo sentido: deixo você fazer e faz sentido. Um jardim com plantas e ervas medicinais que será referência às presidiárias principalmente quando cumprirem suas penas e saírem em liberdade para reconstruírem suas vidas. Esse projeto foi nitidamente influenciado pela formação das Cidades em Transição. Agora nós temos um convite para trabalhar em outra unidade do presídio, também com permacultura, junto às mulheres trans que são presidiárias. É uma unidade absolutamente carente de tudo. No time do projeto temos três pessoas implicadas: a Edite Faganello – Jardineira de Plantas e Pessoas, o Marcelo Quadros – Reciclador de Brinquedos e Brincadeiras e eu – Anfitriã de Processos de Aprendizagem.

Fotos dos jardins com sentidos

 

 

 

 

 

Futuros Desejáveis – Como foi o seu contato com a permacultura e o Instituto Nhandecy?

Liziana – Em 2018 estava com muitos questionamentos e poucas respostas com relação à mudança de paradigma. Estava incomodada com muitas coisas, e uma delas era minha visão de mundo. Perguntava: o que eu quero para mim? O que eu quero para as pessoas? O que eu quero para a minha família? Vendo o mundo caótico, me perturbava não estar conectada com algo efetivo de mudança, especialmente a ecológica. Sempre fui da área relacional, de desenvolvimento de competências e potências e tive pouco contato com a área de sustentabilidade. Disse para mim mesma: vamos fazer essas conexões darem certo. Nesse mesmo ano, atendi um chamado de uma imersão do Art of Hosting, isto é, a arte de anfitriar. É uma vivência de quatro dias onde se trabalha paradigmas, não só de sustentabilidade, mas de visão de mundo. Alguns conceitos tratados vêm da Educação Gaia e o convite é para a mudança de paradigmas. A primeira mudança foi entender a troca de ser facilitadora para ser anfitriã. A anfitriã convida. Isso muda a perspectiva. A intenção e a atitude são de convite. Ninguém é forçado a nada, ninguém é manipulado nesse sentido. No Art of Hosting se toma consciência sobre uma teoria de desenvolvimento humano mais sistêmica. Trabalhamos com a Teoria U, e falamos da permacultura bastante forte, falamos sobre a Pedagogia do Círculo, sempre na perspectiva de quebra do paradigma cartesiano. A partir dessa vivência comecei a participar do Instituto Nhandecy. Atualmente sou diretora de projetos do instituto. Escrevo, estimulo e energizo as propostas junto com um time fantástico de pessoas que ora estão mais ou menos engajadas. Nosso lema é o “bem viver coletivo”. O instituto tem oito anos de existência. O estímulo veio da Educação Gaia. Formaram um grupo, se uniram em torno de uma proposta de sustentabilidade. Ela foi tomando forma enquanto organização no trabalho com essa temática, mas acho que a expertise maior do instituto é a experiência de estar junto, de fazer projetos e atividades juntos. Nosso acolhimento está na chegada das pessoas para participar das atividades, na manutenção das pessoas em conversas. Convivência nem sempre é fácil. É desafiadora. A maior dificuldade das pessoas é chegar nos projetos. E quanto mais desafiadora é essa chegada, mais fico “mexida” porque a reclamação da grande maioria das pessoas é não ser reconhecida e, por vezes, nosso trabalho oferece exatamente isso: reconhecimento.

Fotos das atividades do Instituto Nhandecy. Acesse http://institutonhandecy.org.br/ e contribua

Nota: A Arte de Anfitriar é uma comunidade de prática internacional que explora novos padrões emergentes de aprendizagem e liderança coletivos por meio da aplicação de processos participativos fundamentados no diálogo. Saiba mais em: http://artofhosting.org/pt-br/.

Futuros Desejáveis – Qual é o seu futuro desejável?

Liziana – Esta pergunta têm a mesma importância da primeira. Na minha perspectiva de mundo são várias as dimensões. Na dimensão privada me vejo conectada numa rede bem substancial, bem inovadora. Quero estar no meio dessa rede. Quero o futuro de trocas de sonhos com pessoas e instituições como anfitriã, como facilitadora desses sonhos, e também como uma pessoa que oferta processos para o mundo. Eu desejo para mim um lugar de muita saúde. Projetando sonhos e fazendo com que eles se tornem realidade. Eu me sinto muito ativa. Quanto mais caminho na vida mais me sinto conectada com meu dom, um chamado de ser anfitriã/facilitadora. Quero esse lugar um pouco além, não só para mim. Eu me conecto muito fortemente com a visão de que as pessoas devem ter acesso aos bens que fazem bem. Gostaria muito de ainda estar viva para ver essa coisa mudar. Não ter mais gente passando necessidade básica. Não é só ter o feijão e o arroz propriamente. É ter qualidade de vida; é acessar um lugar em que a comida seja significativa. Que a alimentação traga potência humana para realizar coisas não só para ficar de pé. Eu desejo um governo diferente. Inclusivo no curto, médio e longo prazos. Que a gente possa ser mais feliz porque a felicidade está sendo rifada ultimamente.

Futuros Desejáveis – Como você provocaria nossos leitores?

Liziana – Eu tenho uma provocação que sempre ofereço nos meus processos de aprendizagem que é a partir de um dito popular muito conhecido no Brasil: “o trabalho dignifica o homem”. Reconduzo essa perspectiva exatamente ao contrário: “o homem dignifica o trabalho”. Não estou considerando a questão de gênero aqui. Devemos dar valor àquilo que fazemos. É uma provocação complexa porque envolve uma mudança de paradigma. Não estamos a serviço do trabalho. Não podemos nos submeter a ele, à produção. A produção deve estar a meu favor. Ela deve me completar e produzir um campo de felicidade, e não um campo de opressão. Quando eu digo que o “trabalho dignifica o homem”, para mim, é um paradigma de opressão. A minha provocação é mais ou menos por aí.

Qual é o seu paradigma? “O trabalho dignifica o homem” ou “o homem dignifica o trabalho?”

Interaja conosco. Deixe seu comentário! Um abraço, Mazé Rosolino

  • Minibio Liziana Rodrigues
  • Musicoterapeuta. Psicodramatista Socioeducacional. Especialista em Saúde Pública. Formação em Coordenação de Grupos de Desenvolvimento Pessoa pelo SBDG. Em formação em Análise Transacional pela UNAT Brasil.
  • Estudiosa e praticante da CNV- Comunicação Não Violenta, Ecologia Profunda, Teoria U, Pedagogia da Cooperação, Pedagogia do Círculo, Liderança Regenerativa e Análise Transacional. Diretora do Instituto ATIARA –Conexões e Desenvolvimento Humano. Mediadora Extrajudicial. Diretora de Projetos do Instituto Nhandecy. Integrante da Rede Semear. Escutadora Empática no Projeto Escuta Viva e no Projeto Escutatória. Atriz e Condutora Cênica de Teatro Playback e Teatro Espontâneo.

 

  • Créditos:
  • Fotos do acervo pessoal de Liziana Rodrigues
  • Revisão de texto: Elaine Canhete